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  • Foto do escritorRachel Serodio

Caso Mari Ferrer: revitimização, impunidade e como o judiciário é feito de homens para homens

Em 2018, Mariana Ferrer Borges, uma influenciadora digital que ficou conhecida nas redes sociais como Mari Ferrer que ocupava o cargo de embaixadora do estabelecimento Café de La Musique, um beach club de luxo em Florianópolis (SC), divulgando o espaço através das suas redes sociais. No dia 15 de dezembro, a jovem participou de um evento e, no dia seguinte, registrou um boletim de ocorrência relatando ter sido drogada e seguida estuprada. Cinco meses após o registro da ocorrência, em maio de 2019, o caso não havia caminhado e Mariana decidiu compartilhar seus relatos nas redes sociais. A história viralizou e foi compartilhada por milhares de pessoas, incluindo personalidades famosas.


Mari, através das suas redes sociais (Twitter e Instagram), relatou tudo o que teria acontecido no dia da festa. Primeiramente, afirma que o agressor não teria se aproximado enquanto estava lúcida e, por isso, não teria lembranças dele, sendo levada para um lugar desconhecido pela mesma, a área privativa do Café de La Musique.


Ao divulgar prints de conversas com seus amigos, são mostradas mensagens escritas de maneira errada, frases desconexas e um áudio para uma de suas amigas com a voz alterada, onde ela diz não estar bem e sozinha, sem saber para onde ir.


O estabelecimento onde Mari trabalhava recebeu outras acusações de jovens que teriam sido dopadas e abusadas no local. No entanto, o medo do julgamento e ódio na maior parte do tempo impede que a maior parte de mulheres violentadas sexualmente dêem andamento as denúncias e persistam nas investigações. Em paralelo com o desejo de ver seu violador responsabilizado, existem não apenas sentimentos como medo, impotência e culpa, mas toda uma formação social que desqualifica a palavra da mulher: o androcentrismo do sistema de justiça.


Uma matéria de 2020 expôs o novo caso, porém, não foi noticiado nenhum avanço nas investigações. O Café de La Musique segue funcionando, recebendo pessoas influentes.




Dísponível em: https://bit.ly/3lNzQ4C


Em uma entrevista para a Universa, concedida em novembro de 2019, a mãe da jovem, Luciane Aparecida Borges conta que viu a filha chegando de Uber sozinha e abalada e imaginou que a jovem pudesse estar bêbada, algo que nunca havia acontecido. Porém, ao ajudar Mari a retirar suas roupas, viu que o body e a calcinha que sua filha vestia estavam ensanguentados e a roupa estava com um forte odor de esperma. Segundo a mãe, os efeitos da droga teriam permanecido até o dia seguinte, quando foram a uma delegacia de Florianópolis registrar um boletim de ocorrência.


Apenas em junho, André de Camargo Aranha se tornou réu do caso, investigado como estupro de vulnerável. No início das investigações, o empresário de marketing digital, negava ter se aproximado da jovem e se recusava a realizar um exame de DNA para que a polícia avaliasse se o seu material genético era compatível com o do esperma encontrado na roupa da influenciadora. Porém, a delegada responsável pelo caso na época, Caroline Monavique Pedreira, pediu que um copo de água usado pelo empresário durante seu depoimento fosse estudado.


Posteriormente, um laudo do IML (Instituto Médico Legal) comprovou o rompimento recente hímen de Mari. Já nos resultados, foram comprovados a compatibilidade entre o seu material genético e o esperma presente na calcinha. E ainda, ele foi reconhecido nas imagens das câmeras de segurança do local subindo uma escada de mãos dadas com ela e foi apontado como suspeito por duas testemunhas.


Em agosto de 2020, o Instagram tirou a conta de Mari Ferrer do ar. Segundo Mari, no e-mail que recebeu da plataforma, seu processo teria relação com o bloqueio de sua conta, o único lugar onde ela conseguia espaço para divulgar o crime.






O que especialistas afirmaram no decorrer das investigações


O processo e o julgamento que levou à absolvição do empresário foi marcado pela misoginia; ataques à vítima por parte do advogado do acusado, troca de promotores e delegados, depoimentos conflitantes de Aranha e mudança na linha de argumentação do Ministério Público.


Em trechos de uma audiência virtual, o advogado de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, expõe fotos sensuais de Ferrer, questionando sua integridade moral, falando frases marcantes como “jamais teria uma filha do nível” de Ferrer e ao ver a jovem em prantos dizer: “Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo” e por fim questionando o fato de Mariana Ferrer, até então, nunca ter tido uma relação sexual: “Tu vive disso? Esse é teu criadouro, né, Mariana, a verdade é essa, né? É teu ganha pão a desgraça dos outros? Manipular essa história de virgem?”.


Além disso, Mariana descobriu um grupo de embaixadores do Café no qual ridicularizavam todo o acontecimento.











Segundo a advogada Carolina Gerassi, a artimanha de desqualificar a vítima em ações penais que envolvem crimes sexuais contra pessoas do gênero feminino não é nova. Em suas palavras, “a audiência serve para produzir prova. O máximo que o advogado de defesa poderia ter feito eram perguntas para ela na qualidade de vítima em sua oitiva. Jamais agredi-la . Jamais ofendê-la e debochar de seu sofrimento", ressalta.


A decisão inédita sobre estupro culposo: “quando não há intenção de estuprar”

O crime de estupro de vulnerável caracteriza a prática de "conjunção carnal ou ato libidinoso" com a vítima sem que ela possa oferecer resistência. No caso de Mariana, o crime teria acontecido porque ela afirma ter sido dopada, porém, o exame toxicológico mostrou um resultado negativo para ingestão de substâncias que pudessem ter alterado o seu estado de consciência.


Por meio dos vídeos das câmeras de seguranças a vítima não aparentava estar muito embriagada ou drogada a ponto de não oferecer resistência, então o MP entendeu que o réu acreditava que ela estava sã e consentiu para o ato sexual. Logo, o pedido do MPSC à 3º Vara Criminal de Florianópolis foi pela absolvição.


Nesse sentido, o órgão alega que Aranha incorreu em “erro de tipo”, previsto no artigo 20 do Código Penal: ocorre quando o indivíduo, por desconhecer a realidade que o cerca no momento do crime, acredita estar praticando um ato lícito, quando na verdade está praticando algo ilícito. Logo, Aranha incorreu, segundo o MPSC, em erro do tipo ao não ter como saber sobre a condição de vulnerabilidade da vítima, uma vez que não foi comprovada.


O juiz, então, entendeu que não havia nos autos elementos capazes de comprovar que Ferrer estava embriagada ou drogada a ponto de que o consentimento dela fosse inválido. E dessa tragetória toda surgiu o termo de “estupro culposo” alegando que não havia a intenção de estuprar.


Recentemente o caso voltou à tona, com a 2ª absolvição de Aranha. Um exemplo de como a justiça não condena homens ricos e brancos, mesmo quando a vítima também é branca. Depreende-se aqui a face misógina da sociedade, onde se inclui o sistema de justiça: uma mulher é novamente vítima de ataques, tem sua palavra deslegitimada e posta à prova e a sociedade reflete esse machismo nas centenas mensagens de ódio que Mari recebeu.


Mari pronunciou-se em suas redes sociais após a nova absolvição de seu algoz. Ela tem estresse pós-traumático, faz tratamento de depressão e realiza acompanhamento médico.





O caso de Mari não é único. E toda sua luta demonstra na prática a invisibilidade do sistema de justiça com as vítimas de crimes contra a dignidade e liberdade sexual.


A audiência que violou tratados internacionais e a própria Constituição não foi declarada nula. A postura dos entes do estado naquele ato ( juiz, promotor e defensor público) demonstram na prática como o silêncio dos homens perpetua as violências de gênero. E a OAB nenhuma medida tomou quanto a atuação desqualificadora e violadora do Estatuto da advocacia do advogado de Aranha.


O sistema de produção de provas em se tratando de Brasil é precário. A neutralidade exigida pelo sistema acusatório tem lado, dado que é uma criação falaciosa de homens para homens, como se mulheres e crianças não estivessem hierarquizados. O que não é verdade.


Mari Ferrer é mais um caso emblemático de como corpos de mulheres são tratados nesse sistema que relativiza o consentimento e que desqualifica mulheres institucionalmente.


Assim como a sociedade brasileira se fundou, através de estupro das mulheres, em especial as negras e indígenas, Mari Ferrer é mais um caso.

De estupro.

Legitimado pelo Estado desde sua formação de Brasil.


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