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Quem enriquece o patriarca?


Jean-Baptiste Debret


Rachel Serodio de Menezes

( É professora convidada do IPIA, mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa - Portugal. Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas (FGV - RJ). Possui graduação em Direito pela Universidade Cândido Mendes (RJ). Pesquisadora nas áreas de direito das famílias, violência de gênero e direitos humanos. Advogada feminista fundadora do escritório Rachel Serodio Advocacia. Cofundadora do Coletivo de Advogadas Familiaristas Feministas.)


Na última semana duas decisões semelhantes em países distintos nos chamaram atenção: Na China[1], o judiciário local ordenou que o homem pagasse à ex-esposa o equivalente a 42 mil reais pelos trabalhos domésticos prestados nos cinco anos de união. Ela afirmou à Corte de Pequim que cuidava sozinha do filho e o marido não realizava nenhuma função em casa. A regra da compensação é uma novidade do Código Civil Chinês. O juiz afirmou que a divisão de bens não contempla o trabalho doméstico e que o trabalho desempenhado por ela contribuiu para a renda do marido.


Já em Portugal[2], um homem foi condenado a pagar mais de 60 mil euros à ex-companheira. Os dois viveram mais de 30 anos juntos. O Supremo Tribunal de Justiça em sua decisão afirmou que o exercício da atividade doméstica exclusiva ou essencialmente por um dos membros da união de fato, sem contrapartida, “resulta num verdadeiro empobrecimento deste e a respectiva libertação do outro membro da realização dessas tarefas”.


Em o Calibã e a Bruxa, Silvia Federici analisa que as mulheres não seriam integralmente submetidas aos homens enquanto trabalhadoras bem como jamais teriam retirada sua autonomia se não tivessem passado por um intenso processo de degradação e subjugação social desde o século XVI, inclusive legalmente.

Fato é que além de toda a erosão em seus direitos, o que mais as impactou foi a vedação social de realizar atividade econômicas por conta própria, bem como a infantilização social que as consequentes perdas de direito as impuseram.


Acrescido a isso, o Estado não poupou esforços para retirar das mãos das mulheres o controle da reprodução, definindo desde então a maternidade compulsória e a alienação de seus corpos como uma das formas legitimadas da domesticação e submissão impostas pela caça as bruxas[3]


O êxito da formação social capitalista, advinda das colonizações e diáspora de povos escravizados não menos dependeu do confinamento de mulheres ao espaço privado denominado.


Por sua vez, a evolução (?)– ou seria não evolução – das garantias legais dos direitos das mulheres – juntamente com as bases de formação social hegemônica ainda as restringe ao espaço privado exercendo o trabalho reprodutivo invisível e não remunerado doméstico e de reprodução de mão de obra para o estado.

Em um salto temporal, em que pese as sociedades modernas tratem constitucionalmente com igualdade homens e mulheres, fato é que há pouco menos de meio século as referidas garantias passaram integrar o ordenamento jurídico de algumas nações.


No Brasil, em especial, em que pese a promulgação da Constituição Federal tenha se dado em 1988, muitos julgados ainda traziam o patriarcado como norte ante a iniquidade da legislação civil. Apenas em 2003, com a vigência do Código Civil atual, tivemos no Brasil a primeira legislação civil onde os vínculos familiares são formados pelos afetos bem como determinado fora o fim do poder do patriarca.


Entretanto, o trabalho reprodutivo segue invisibilizado e a jurisprudência majoritária segue não reconhecendo que mulheres abrem mão do trabalho produtivo diante do casamento. Ou seja, mulheres casadas, em parte, são as responsáveis exclusivas por trabalhos domésticos e pela maternidade, ao passo que outras, quando mães ou não, têm a carga mental de administração integral dos serviços domésticos, o que lhes impacta em turnos maiores de trabalho – ainda que não remunerados – diários.

Muitas não abrem mão integralmente do trabalho produtivo, mas são impedidas de investir na carreira e estudos, limitando-se muitas vezes a empregos com baixas remunerações por serem mães solos e precisarem investir na subsistência pessoal e dos filhos sem que lhes sobre a possibilidade de investir em si mesma, tendo-lhes impedido a ascensão social.


Fato é que a doutrina embasada na legislação atual permite a modalidade de alimentos compensatórios como forma de restabelecimento econômico diante do divórcio.

Ainda que excepcional, tem caráter indenizatório, sendo possível o reconhecimento do mesmo em casos como o da China e de Portugal, onde a mulher que exerceu o trabalho produtivo e de cuidado, invisibilizado e não remunerado – com raiz histórica na caça as bruxas que nunca terminou – possa ser compensada por ter aberto mão da carreira profissional para cuidar dos filhos e dedicar-se às tarefas domésticas enquanto o outro atinge qualificação profissional as expensas de quem restrito ao espaço privado estava.

Relegar o estudo da caça as bruxas – que se perpetua no tempo – bem como direcionar suas consequências ao esquecimento, é invisibilizar o massacre aos corpos de mulheres que ensejou a concepção social estruturante que vivenciamos.


Hoje, não indenizar mulheres que se dedicam ao casamento – ou não lhes conceder pensão alimentícia – após deixarem de lado o trabalho produtivo para se dedicarem ao trabalho reprodutivo - é violenta-las psicológica e institucionalmente e dedicá-las ao apagamento exigível pelo capital: encerram seu ciclo vital como bruxas, sem autonomia, pobres e ao final são mortas após parirem filhos para o Estado e remunerarem através de seus corpos – além de se submeterem – os homens.

Ao que parece , por fim, é que o patriarca saiu do papel, mas segue conosco abraçado ao sistema de justiça.

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